Matéria publicada originalmente no site Azmina
Autor: Equipe Azmina
O número de mulheres que não tem filho aumentou em 6% nos últimos 10 anos no país. Quanto maior o grau de educação, menor a chance da mulher querer engravidar .
Há muitos séculos predomina nas sociedades a ideia de que cabe à mulher a responsabilidade de continuar a linhagem de seus parceiros, já que é a sua biologia que permite a gestação. Ao longo da Idade Média, do Renascimento e da Modernidade – embora tenhamos relatos desse comportamento ainda na Contemporaneidade –, foi considerado uma desgraça se casar com uma mulher que não pudesse ou não quisesse ter filhos. Em algumas sociedades, ainda hoje, a partir da primeira menstruação, uma menina já pode ser separada de sua família e ser casada com um homem muito mais velho.
Estatísticas mostram, porém, que, no Brasil, a obrigação de ser mãe tem caído por terra de maneira constante durante os últimos 10 anos. Segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2004 e 2014 aumentou em cerca de 6% o número de mulheres que não têm filhos no Brasil. O evento é maior entre mulheres de pele branca (41,7%), nas regiões Sul (38,1%) e Sudeste (41%) do país. Além da cor da pele, outro fator é levado em consideração: quanto maior o acesso à educação, maior a percentagem de mulheres sem filhos. Em 2014, entre mulheres de 15 a 49 anos, 38,4% não tinham filhos. Entre aquelas com mais de oito anos de estudo, o número crescia para 44,1%. Entre as que tinham até sete anos de estudos, apenas 20,9% não tiveram filhos.
O desapego com a ideia de maternidade vêm em graus diversos entre as brasileiras. Daniela Cureau de 34 anos, por exemplo, não se atrai pela ideia de ter filhos biológicos. A artista plástica conta que, desde a adolescência, pensa em adotar. “Aos poucos fui percebendo que isso seria tão bom quanto ter um filho biológico, e fui excluindo em minha cabeça a segunda opção.”
A partir dos 20 anos, explica que já não pensava mais em ter filhos. Para Daniela, a ideia de colocar uma nova criança no mundo enquanto existem tantas que precisam de um lar é incompreensível. “Vejo isso não só como uma forma de exercer a maternidade, como também como um dever moral. Crianças não deveriam estar abandonadas”, diz. Quanto ao instinto materno, ela acredita que não são todas as mulheres que o têm: “Seria impossível generalizar as pessoas dessa forma. No meu caso, apesar de não ter vontade de engravidar, tenho um grande desejo de ser mãe”.
Existem ainda certas mulheres que sequer pensam nisso. E é totalmente natural. A psicóloga Érica Nunes diz:
“O instinto materno ocidental, tal qual o conhecemos, é uma criação europeia do século 18. Foi trazido no período da colonização para as mulheres indígenas e negras, que tinham outras formas de organização na questão da maternidade”.
Érica explica que antes das revoluções francesa e industrial, o comum entre mulheres brancas era enviar os filhos para amas de leite ou contratar uma, abrindo mão da obrigação de serem responsáveis pelo aleitamento e pela educação daquela criança. A taxa de mortalidade infantil, à época, era altíssima. Depois das revoluções e com as guerras no velho continente em busca de novos territórios, o Estado percebeu que precisava daquelas crianças vivas, e começou campanhas que incentivaram um maior papel de maternagem entre as mulheres, fazendo com que amamentassem os próprios filhos e os educassem.
Paralelamente, as mulheres começaram a se conscientizar da sua própria situação de opressão e começaram a buscar mais educação, formando grupos para discutir filosofia, temas atuais e a condição de cada uma. Eram conhecidas como As Preciosas. No seio desses grupos, nasceram mulheres que não queriam mais ter filhos, não queriam continuar com o papel de dona de casa, reprodutora. E isso foi considerado perigoso por muitos homens. Para reforçar, portanto, o “lugar da mulher”, filósofos renomados, como Jean-Jacques Rousseau, passaram a enaltecer a mulher-mãe. De Eva, perigosa e pecadora, a mulher passou a ser Virgem Maria, mas só se fosse mãe. A maternidade foi glorificada e, agora, a mulher não podia apenas gestar. Ela tinha que amamentar e educar.
“Ainda hoje, meninas ganham, como brinquedos, bonecas, fogão, um ferro de passar, um boneco para ser o seu marido. A mulher é colocada nessa posição de mãe cuidadora desde o berço”, explica Érica. Além do mais, estudos científicos comprovam que a maternidade, em muitas mulheres, é a causa de doenças mentais, como depressão e ansiedade.
“A mãe é a sempre a responsável. Se sai para trabalhar e deixa o filho sozinho, não é boa mãe. Se tem uma vida sexual ativa, é promíscua; se quer estudar no exterior, mas não pode levar o filho, é uma megera; se o filho faz algo errado, é preso, é grosso, a mãe que não soube educar. Nunca a sociedade responsabiliza o pai”, diz a psicóloga.
Não são poucas as mulheres que nunca quiseram ter filhos. Valeska Zanello, 41 anos, é psicóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) e, para ela, não foi uma descoberta não querer ser mãe. Ela simplesmente nunca sentiu o desejo de ter um filho. “Vi que era diferente quando, nas brincadeiras de criança, minhas amigas sonhavam em casar e ter filhos. Meus sonhos sempre eram ser cientista de laboratório, arqueóloga, desbravadora da National Geographic”, lembra. O que queria Valeska, desde pequena, era estudar muito e viajar o mundo todo. Ela diz nunca ter sentido pressão para ser mãe, mas conta que as pessoas frequentemente diziam que ela ia mudar de ideia, que a melhor coisa do mundo é ter filhos. “Não me convenceram. Minha vida é ótima, tenho certas liberdades que uma mulher com filhos não têm. Seria muito difícil abrir mão disso”, explica. Além do mais, Valeska acredita que não há nada de mais em uma mulher não querer ser mãe. É apenas mais uma possibilidade, tão digna quanto ter filhos biológicos ou adotar.
Mas a psicóloga Érica Nunes explica que, ainda hoje, mulheres que não querem ter filhos são vistas como subversivas. Se ela chegou a um alto nível na carreira profissional ou acadêmica, é porque sacrificou a maternidade. Segundo a psicóloga, a mulher que não quer ter filhos é taxada de egoísta, porque não quer cuidar de outra pessoa, e ainda pode sofrer o ressentimento de outras mulheres, mães, que podem questionar suas próprias escolhas. “Afinal, quando é que saiu a chamada ‘Melhor mãe do ano’ na capa de alguma grande revista? Normalmente vemos ‘Empresário do ano’, ‘Cientista do ano’, nunca uma mãe. É muito importante que o discurso da maternidade seja desconstruído porque ele é muito pesado para as mulheres, pode impedir a construção social, profissional, acadêmica, porque tira muito do tempo da mulher”, diz Érica.
Em meados de 1970, surgiu nos Estados Unidos um movimento intitulado Childfree, que defende pessoas que optaram por não ter filhos. Os motivos são vários, entre eles estão a preocupação com a superpopulação na Terra, e o direito de uma mulher escolher não ser mãe. O movimento foi ganhando força ao longo dos anos, alguns integrantes chegam ao ponto de passar por cirurgias esterilizadoras para evitar qualquer risco. No Brasil, o movimento é conhecido como Sem-Filhos.
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