Texto originalmente publicado no site Azmina
Autora : Gabriela Gavioli
Aqui em casa, estamos cumprindo a quarentena à risca desde o começo e meus filhos, de quatro e cinco anos, que tinham uma rotina pré-estabelecida de aulas e atividades, tiveram isso tirado bruscamente deles, sem que tenham muita compreensão do que está acontecendo. Apesar disso, as primeiras semanas foram tranquilas, mas aos poucos eles começaram a ficar incomodados, perguntando se iam sair ou ver a avó.
Logo meu vizinho começou a interfonar, dizendo que fazia home office e que as crianças estavam atrapalhando. Nós pedimos desculpas, mesmo sabendo que eles nunca fizeram um barulho surreal. É barulho normal de criança, que corre, que se frustra, que se joga no chão.
Até mudamos nossa rotina para evitar estresse: eles acordam às sete e meia, assistem TV até as nove, sentamos e tomamos café e depois começamos as brincadeiras que vão até a hora do almoço. Os meninos brincam bastante sozinhos nesse período enquanto cozinho. Depois tem o horário do filme, que foi criado por causa das reclamações, seguido de mais duas ou três horas de brincadeira. Aí eu começo a organizar a janta, tem o banho e os pulos na cama por dez minutos, porque eles estavam ficando muito ansiosos, escovam os dentes, lemos um livro e dormem às 20h.
Mas o vizinho seguiu ligando e reclamando, inclusive sendo mais gentil quando meu companheiro atende. E nós estamos também fazendo home office, com crianças ao fundo, gritando, chorando, tendo que separar briga.
Com essas ligações eu comecei a ficar muito mais ansiosa e estressada com eles. Já chorei dois dias sem parar, tive dor no estômago.
Uma coisa que reparei ao longo da quarentena é que eles têm ficado mais frustrados, entediados, agressivos e estão brigando mais. A gente tem um apartamento de 83 metros quadrados e eu sei que é um privilégio. Tento colocá-los na varanda pra ficar longe do quarto do vizinho mas as reclamações continuam.
A última vez foi bem pesado. Ele disse: “a gente está tentando ser compreensivo, mas está bem complicado, tem gritos. E respondi: “sim, tem gritos. Porque desde que você ligou, eu tenho ficado extremamente mais ansiosa e nervosa a ponto de ter medo de essas crianças fazerem barulho de andar pela casa e você reclamar”.
Ele não tem filhos e não entende rotina com criança, por isso expliquei em detalhes coo tem sido difícil o isolamento com crianças em casa e ficamos de combinar horários para que eles possam fazer barulhos. Mas essa conversa nunca aconteceu. No dia seguinte chegou a notificação do condomínio e, um pouco depois, o aviso de multa. O mais bizarro é que na advertência está escrito que é por barulho de cachorro, mas os meus dois cachorros não latem.
A multa me quebrou no meio. A pressão de entreter essas crianças, tentar manter sanidade mental delas boa, de explicar o que está acontecendo, tentar fazer com que o direito delas de brincar funcione, que elas tenham momentos positivos e felizes no meio da pandemia, já é muito grande. E tenho de pensar como vou fazer isso e agilizar comida, cuidar da roupa, varrer a casa. É muito difícil.
Já escrevi pro síndico dizendo que não sabia o que fazer, que temos barulho normais de uma habitação. O síndico disse que era pra resolvermos particularmente e agora me mandou uma multa. Ainda tentei conversar e ele insiste que é barulho de cachorro, sendo que todas as ligações foram por causa das crianças. Pedi uma reunião de condomínio, mas não aceitam. Querem só penalizar, sem que a gente tenha chance de resposta.
Sem falar que só recebemos a notificação de multa, sem o valor e sem informações de como recorrer.
O que me dá muita raiva é que qualquer coisa que eu possa fazer para aliviar a barra do vizinho me sobrecarrega. Compramos placas de EVA, foi um investimento com um dinheiro que a gente não tem e pra limpar me dá muito mais trabalho. Se fico atrás deles pedindo para não fazerem barulho, não consigo fazer almoço, não tenho tempo de ir no banheiro. Fico super nervosa com a possibilidade deles brigarem enquanto eu estou lavando roupa, tomando banho e o vizinho surtar.
A acústica do prédio é realmente ruim, mas acho que falta empatia da pessoa entender que a gente está passando por esse momento difícil para todos. Tem dias em que coloco eles para dormir e o vizinho está lá batendo panela na janela.
A responsabilidade de ter filhos já é bem pesada. Tentar mantê-los bem durante a quarentena, sem previsão de como e quando vai acabar, com a escola mandando atividades já é bem difícil. Essa pressão para as crianças não poderem ser crianças nessa época tão caótica é desumana.